O livro de Paulo
Rosembaum, Homeopatia: medicina interativa, história lógica da arte
de cuidar, apresenta uma análise desta prática médica, abordada através
de suas questões epistemológicas, com a qual visa identificar suas bases,
mapear suas necessidades e estabelecer propostas de fundamentação empírica,
considerando para tal as diversas alternativas hoje disponíveis. Aponta este
levantamento como pré-requisito à elaboração de um programa de pesquisas que
seja apto a suportar as características da racionalidade, garantindo-lhe
desenvolvimento e validação científica.
O
presente trabalho é resultado da dissertação de mestrado apresentada à
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo no Departamento de
Medicina Preventiva, defendida em junho de 1999 sob a orientação do prof.
José Ricardo C. M. Ayres. Este assinala no prefácio as questões que lhe
provocaram a experiência de lidar com este campo do saber e os pontos de
vista invocados pelo autor.
Rosembaum
inicia contextualizando a homeopatia como a 16ª especialidade médica em
número de profissionais registrados no Conselho Federal de Medicina. Fala da
expressiva interpenetração nos programas públicos de saúde, mormente no
âmbito das ações primárias e da demanda na área de formação de recursos
humanos, onde tem programa de qualificação reconhecido e com carga horária
equiparável às demais especialidades. Neste sentido refere-se a um
"fenômeno de expansão" não como um evento delimitado ao país, mas
como um reflexo do panorama internacional onde a prática da homeopatia ganha
espaço progressivo. Justificando como uma necessidade irrecorrível a questão
de pesquisas científicas para que se sustentem as condutas e os fundamentos
que orientam suas intervenções na assistência pública à saúde.
A partir
da demanda pública e do reconhecimento dos efeitos positivos pela população,
analisa como pertinente as expectativas do meio científico em relação à
homeopatia com respeito à validação dos eventos empíricos e das metodologias
que são aplicadas na sua consecução. Neste ponto situa o eixo central de seu
trabalho, o qual, apoiado na metodologia da epistemologia histórica de
Bachelard e Canguilhem, analisa os fundamentos da racionalidade médica
homeopática. Por esta via aborda, conseqüentemente, discrepâncias essenciais
entre as epistemes que sustentam a racionalidade da biomedicina hegemônica,
focada na ordem do gênero nosológico, e a da medicina homeopática,
centrada na ordem das espécies e da observação das singularidades
individuais.
Sobre o
movimento homeopático contemporâneo, refere-o como sendo a reconquista de um
estatuto institucional mais seguro e politicamente mais bem posicionado,
decorrência de uma diversidade de articulações construídas na área da saúde.
No entanto, ressalta que o discurso científico e os novos campos de
interlocução conformaram uma miríade de dialetos terminológicos e ramificações
que impedem que se fale em "a homeopatia", mas sim em "as
homeopatias". Justifica a necessidade de sua investigação como meio de
escapar da simplificação, reducionista e perigosa, que historicamente
polariza correntes homeopáticas que se autodenominam científica e clássica.
Aponta na homeopatia contemporânea necessidades que ultrapassam largamente a
simples busca de se fazer entender através da assimilação incondicional dos
critérios da biomedicina, ou de seguir assepticamente proposições doutrinárias
que visam reproduzir "literalmente" o projeto original.
Expõe
sobre a construção histórica, política e social do corpus de
conhecimento médico homeopático, traçando relações com a história da medicina
e das doutrinas médico-biológicas que modulam o atual modelo biocêntrico de
saúde. Neste processo analisa algumas das principais doutrinas médicas, em
especial, a tradição empírica e vitalista. Perspassa a questão dos saberes
hegemônicos e minoritários que transitam ao largo da história, observando
"possiblidades epistemológicas originais" e "descobertas
negadas" em detrimento da positividade dos eventos patológicos que
constroem a historiografia da moderna medicina.
Aborda a
construção da epistemologia homeopática através de sua história, analisada
através dos conceitos de Kunhn e Lakatos, refere-se a cortes, refluxos,
contrapensamentos e choques, inserido-os tanto em dimensões científicas
quanto sociopolíticas. Dentro deste contexto apresenta as proposições de
Hahnemann como uma ruptura epistemológica, como uma "virada de
mesa" que desafia determinadas categorias estáveis na "ciência
normal" da medicina de sua época. Analisa o movimento homeopático
através de um recenseamento histórico-epistemológico em que discrimina personagens
e fatos envolvidos nos processos de irrupção e encapsulação das idéias que
vão compor vertentes de pensamento na homeopatia contemporânea.
Na
análise do processo histórico através dos seus aspectos
filosófico-conceituais e político-institucionais, aborda o desenvolvimento do
saber homeopático em fases, nas quais traça a trajetória de personagens e
conceitos. Toma os fatos como idéias e estas como fatos, deste modo, mostra
rearranjos e realinhamentos experimentados pelo "programa científico da
homeopatia". Situa a homeopatia entre os sistemas médicos privilegiando
sua filiação à doutrina conhecida como vitalismo, chamando atenção para as
modulações que toma ao longo a história. Aponta a influência desta doutrina
nos programas de investigações empíricas presentes até o início do século XX
não como um objeto de estudo, mas como uma conseqüência da própria natureza
dos fenômenos investigados. Seguindo esta lógica implica as linhas
"vitalistas" com a ênfase ao valor da singularidade individual e as
questões que interrogam a suficiência dos elementos físico-químicos para
fundamentar a patologia e o processo de restauração da saúde. Propõe um aprofundamento de concepções presentes
no vitalismo, no âmbito do processo de vida e morte, com perspectiva de se
elaborar uma teoria geral dos sistemas vivos.
Constrói
um painel de interlocuções para demonstrar a teoria homeopática como
tributária direta da filosofia vitalista, estabelece conexões, aponta
distinções e examina como o pensamento de Hahnemann é acolhido e rechaçado em
diversos pontos da Europa. Indica como este pensamento cria núcleos de
resistência, dissemina-se pelo mundo ocidental e origina correntes que
alteram o seu eixo epistemológico com adaptações que visam validá-la frente
aos postulados da racionalidade médica biocêntrica. Debate sobre o pensar
científico e os métodos de argumentação, neste aspecto aborda a recente
polêmica que envolve a tese de Beneviste acerca da "memória da
água". Aponta para as contribuições da homeopatia na investigação dos aspectos
qualitativos da saúde, principalmente no sentido de compreensão do binômio
enfermidade/enfermo, particularmente na dimensão antropológica enquanto
técnica de intervenção. Nesta, ressalta a sua particularidade de privilegiar
como saber médico a fenomenologia da individualidade aplicada ao homem
enfermo. Refere-se ao aproveitamento do conhecimento experimental gerado
através de um método empírico que se fundamenta na observação dos sintomas,
os quais visam expressar e valorizar a totalidade do indivíduo, conformando
parâmetros e critérios que evidenciam aquilo que denomina como
"manifestações da vitalidade individual".
É no
capítulo dedicado aos perfis teóricos da terapêutica homeopática onde
concentra o debate sobre os fundamentos epistemológicos da homeopatia como
prática médica. Apresenta inicialmente as questões da predisposição,
suscetibilidade e idiossincrasia, traçando o conceito genérico, isto é,
dentro do campo médico e científico, assim como os significados no contexto
homeopático. Aponta para a relevância que assumem como "elementos
operacionais" da doutrina homeopática, tanto com respeito à determinação
dos traços que individualizam a causa e o curso dos adoecimentos, quanto e,
também, na determinação das singularidades que irão distinguir tanto as entidades
nosológicas da mesma espécie entre si, quanto para determinar os elementos
que indiciam capacidades responsivas às substâncias aplicadas na terapêutica.
Aborda a evolução destes conceitos ao longo da construção empírica do saber
homeopático por seu fundador, assim como por comentadores, apontando para
aspectos conflitantes e que requerem investigação sistematizada, tanto para
sua determinação como elementos semiológicos na clínica, quanto para sua
análise frente ao estudo das propriedades das substâncias terapêuticas.
Sobre a
similitude como princípio na terapêutica, situa a sua enunciação e aplicação
por Hipócrates, assim como o seu percurso ao longo da história, aborda também
a sua relação com que o que denomina Foucault como "raciocínio analógico"
que perspassa épocas e culturas, apontado-o como uma episteme em si, um modo
de pensar, isto é, um solo comum para diversas construções discursivas. Situa
as patogenesias, o programa de investigação das substâncias medicinais, como
o fundamento praxiológico que rompe de forma definitiva com os sistemas
médicos de sua época, tanto por ser pré-requisito à escolha das substâncias,
quanto por se fundamentar em experimentações com indivíduos não
enfermos. Com respeito à opção de experimentar em indivíduos saudáveis,
refere-se aos "empíricos" que, na história da medicina, cogitaram
ou aplicaram rudimentarmente esta proposição. Implica o desenvolvimento e
aprimoramento deste método experimental com a origem das doses mínimas e
destas com as dinamizações, assim como também com a construção do modelo de
observação da totalidade. Esta última conduzindo aos referenciais
semiológicos que determinarão a demonstração empírica da concepção de unidade
funcional e da singularidade. Ambos como elementos necessários ao estabelecimento
das analogias que orientam a técnica de intervenção.
No
capítulo em que aborda os desafios epistemológicos que estão propostos à
homeopatia faz o que chama de "levantamento preliminar e
exploratório" de problemas que precisam retornar para o âmbito da
pesquisa e reflexões em homeopatia. Destacamos: "variabilidade
individual e terapêutica", sobre a qual enumera um conjunto importante
de aspectos que precisam ser aprofundados na técnica da individualização,
visando garantir clareza e precisão para os critérios que se envolvem com a
análise e a depuração dos elementos "subjetivos" deste processo. Em
enfermidades crônicas faz considerações acerca da origem etiológica dos
sintomas, isto é, aos fatores endógenos e exógenos que geram o complexo sintomático.
Analisa e debate aspectos que dizem respeito à questão da norma e da
construção do patognomônico, tanto na enfermidade, quanto no sujeito. Aponta
nesta última os elementos centrais que problematizam a construção de uma
totalidade individualizante, inserindo aí a questão da regularidade do
diverso na seriação dos eventos em um dado ordenamento temporal. Neste
contexto percorre as regras instituídas e destituídas ao longo da história da
prática homeopática. Assim, indica o método de apreensão do sujeito através
de elementos singularizantes presentes na evolução das histórias clínicas,
como mais um campo de investigação necessária.
Em
"homeopatia como medicina do sujeito" contextualiza o momento
histórico da medicina em que é feita esta proposição, definindo o seu
significado e estabelecendo distinções, assim como também nexos com outras
propostas passadas e presentes. Em "homeopatia: medicina interativa, por
uma semiologia do sujeito", avança sobre a questão da construção das
histórias clínicas e da abrangência das concepções de totalidade do objeto
observado pela medicina, deste modo adentra a noção de limites do campo de
observação e conseqüentemente da definição do próprio objeto. O último tópico
refere-se a um "neovitalismo" quando discorre sobre o curso desta
idéia no presente e as repercussões dos conceitos de totalidade e unidade
sobre as ciências da vida. Afirma ser possível considerar o vitalismo como
conceito em transição que aguarda por desenvolvimentos da ciência para que se
expliquem os fenômenos relacionadas às ultradiluições dos medicamentos
dinamizados. Conclui o capítulo referindo-se aos mecanismos vivos e
artificiais, onde aborda a questão da autoconservação, auto-regulação e dos
mecanismos de interação ativa com o meio, debatendo o conceito de organismo
como uma máquina viva e radicalmente distinta da artificial. Adentra assim
nos aspectos mecanicistas do discurso médico e em suas analogias operativas oriundas de ciências auxiliares que,
aplicadas à biologia, tutelam os meios de investigação com elementos
quantitativos rígidos e incapazes de expressar as qualidades inatas aos
eventos vivos. Neste ponto retorna às questões do vitalismo e da carência
atual da ciência para refletir as intuições homeopáticas acerca
do fenômeno vital, afirmando-o como de interesse de todos, não apenas
homeopatas ou não homeopatas, médicos ou não médicos, mas também de filósofos
ou tecnólogos, poetas ou cientistas etc.
Conclui
seu livro afirmando que a homeopatia não é um sistema auto-suficente e acabado,
mas sim uma ciência e uma prática em construção. Apresenta as possíveis
linhas de pesquisa a serem seguidas na busca da fundamentação científica da
intuição clínica da homeopatia, apontando as vertentes da experimentação, dos
estudos epidemiológicos e dos seguimentos biográficos prospectivos; finaliza
referindo-se às fronteiras epistemológicas. versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758Hist. cienc. saude-Manguinhos v.9 n.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2002
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